O Desenho é:
O ponto mais próximo de uma origem. Pode‐se dizer que o desenho tem a contigüidade
máxima à origem, um local por definição inacessível. Da origem ninguém pode ser
testemunha, seu ar é irrespirável. É um local que de certa forma não existe porque ainda
não houve divisão entre observador e observado, criador e criatura. Mas o desenho parece
surgir de um vazamento disto, nos traz os indícios das primeiras coisas, de “um mundo
primitivo” e do que pode ter ocorrido por lá. Como um eco, ele inventa ou reinstaura todos
os mitos de origem.
SIMULTÂNEO ÀS IDÈIAS. É como o ovo e a galinha, difícil saber quem vem primeiro. Na corrida
por um pódio imaginário suas velocidades e posições talvez se alternem, mas isso não nos é
visível. É mais seguro, portanto, dizer que são simultâneos. Mesmo nesta simultaneidade e
pressa, não existe sobreposição ou anulação, porque desenho e idéias não são de naturezas
distintas: um apenas se transforma no outro e vice‐versa.
RÀPIDO COMO UMA FLECHA. O traço é um projétil/projeto que se estende em potência e
rapidez pelo espaço infinito do desenho. A linha projeta‐se no espaço como sabedora de sua
condição e propósito, apontando espaços e direções futuras. Desígnio. Destino.
Como nota é interessante lembrar que o CorelDraw X3 finalmente transformou os pontos
de controle das curvas de Bézier em vetores/flechas. Um plano crivado de flechas, um plano
para desenvolver possibilidades.
PROJETO. Na passagem do pensiero para o modello, o desenho nos acompanha: nos diz como
– e o que – devemos fazer, nos dá a pauta, a partitura, a planta. O desenho afere resultados,
audita em escala e tamanho. No schizzare2 lança‐se como projétil e balística, igual a um
foguete em direção à lua. Obra de pontaria e exploração, aventura e inauguração. Quebrar
um champanhe no casco de um navio a ser batizado é uma obra de desenho transatlântico.
PRECISO. A linha se afina ao infinito, indo até, mas sem nunca chegar, ao infinitamente
preciso. (Embora tenha um limite, o zoom do Corel não pixeliza). O traço está aqui e não ali,
está inscrito em si mesmo. O plano dividido: o dentro e o fora, o esquerdo e o direito, o de
cima e o de baixo, o geométrico e o orgânico. Delinear/marcar e dividir as terras. Metrias
para um plano futuro. O desenho é a trena do mundo.
1
Ao contrário de esgotar ou fechar o assunto desenho, estas notas pretendem ser portas de abertura para algumas de suas possibilidades. Uma versão quase idêntica foi apresentada no Seminário de extensão “Desenho em questão”, parte do evento “Total Presença: Desenho”, organizado por Blanca Brites. Instituto de Artes da UFRGS, Porto Alegre, RS. 30 de Outubro de 2007.
2
Esboçar (do italiano schizzare: manchar, esguichar)
CORRETO. Nunca erra. Mesmo um desenho cego estará correto. Mesmo uma figura
desproporcional estará correta, pois ambas correspondem a algum tipo de modelo ou
desejo.
HUMILDE. Virtuoso, nem sempre toma os méritos para si. Para Ingres, por trás de toda
grande pintura havia um grande desenho. Seus meios são simples, vive com o mínimo, lhe é
o bastante. Suas ações são diretas. É de natureza servil: serve para muita coisa. É disponível
e afável. Companheiro, confidente e amigo. Há quem o tenha como companhia numa mesa
de bar ou palestra entediante. Alguns o vêem como interlocutor mais interessante que
aquele que insiste numa conversa ao telefone.
INCITADOR. Ativa o que está morto ou adormecido. Cria nova vida em folhas e muros, que
seriam de outra forma, puro tédio. Inscreve‐se de forma ladina em grafites e notas de
rodapé. Quer ir brincar lá fora. Riscar na calçada ou no quadro. Quer escrever palavrões ou
desenhar coisas obscenas. É divertido!
ONIPRESENTE. Ele está na definição de todas as formas, mentais ou concretas. Mesmo
naquelas nem sequer imaginadas. Ou, como queria Degas, o Desenho está “na maneira de
ver a forma“. O desenho está junto no projeto do mundo, é a sua maior parte e arma de
maior poder.
Um mar profundo. Instauração de um desejo. Corte na pele nova, a cicatriz precoce e
abissal. Indelével e irreversível, marca instantânea e por vezes passional. Expõe a carne
inconsciente, antes abstraída num plano limpo e claro. Mesmo que manifesto
desinteressadamente, o desejo subjaz como força profunda.
CAPRICHOSO. Dá voz, em todas as suas volutas, aos caprichos e devaneios de seu dono.
Define e perigrafa idiossincrasias. Delineia, encerra, descerra, planeja, modela, inventa,
exemplifica. Molda‐se facilmente a qualquer coisa. É também, por natureza, curioso,
investigativo, especulativo, confiante e otimista (sua própria inscrição assim o revela).
Permite arrependimentos: honra seu erro como exploração explícita.
Jovem e jamais envelhece. É fonte de frescor e juventude. Há uma alegria e uma energia
que é normalmente atribuída às crianças. Não se categoriza em estilos, não fica datado. Vive
com leveza no presente e aponta promessas futuras. A vida lhe pertence em faculdade.
ESTRUTURANTE. O desenho serve como uma forma de organização do pensamento, tratando
do jogo plástico como pura intelecção. Permite também uma retomada das bases de
negociação com a obra e com as idéias que a originaram. Um retorno a origem (movimento
de reversão) ou ainda um novo começo (retomada à frente). Explicativo, clarificador.
REVELADOR. O que descobrimos depois de 100 desenhos? O que podemos descobrir num só?
Muito mais do que os mistérios arcanos da borra do café, da espinha do peixe, das figuras
do Tarot e dos movimentos planetários. Um risco inconsciente equivale a uma revelação.
Mesmo que esta permaneça oculta a espera de um observador e intérprete e ao preço de
suas próprias projeções. Mostra‐me o que desenhas e eu te direi quem és! Uma mancha no
couro da vaca nos dá a imagem do rosto de Cristo. Um suor no vidro a aparição da Virgem.
Espelho, jogo de espelhos e dimensões ou tela de projeções – pouco ou nada se pode
ocultar – o desenho revela cenas dantescas ou farsas, despudoradamente, ad infinitum.
FANTASMAGÒRICO. Indica presenças mais ou menos reconhecíveis, que não estão exatamente
ali senão em sua essência. O que fica no papel e o que caminha para fora dele? Em sua
forma aberta, está “definitivamente inacabado”
3
, é um ser anímico que sobrevive à morte e
às vezes assusta. A virgem com a criança, Santa Anna e São João Batista de Leonardo da
Vinci na National Gallery, Londres: o desenho parece maior do que é. Sofreu um atentado
com espingarda cano‐serrado, deve ter assustado alguém. Do mesmo Leonardo A virgem
das rochas: um desenho escondido por detrás da pintura, descoberto por Raios X. Revelação
do oculto, transparência fantasmagórica. Imaculada conceição.
TRANSCENDENTE. Não se limita materialmente, permite‐se existir sob qualquer condição.
Beneficia‐se das restrições e da austeridade. Como idéia, independe de um suporte. Como
processo, independe da obra acabada. No entanto é livre para retornar, sempre que
necessário, as suas bases tradicionais. O Desenho parece não se envergonhar de sua
genealogia nem de sua imagem futura. Coloca‐se sempre próximo, ao alcance da mão.
3
Como Duchamp chamou “O Grande Vidro”.
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